A repórter
Manuela Azenha esteve em Cuiabá, Mato Grosso, onde assistiu à defesa de tese da
pesquisadora Danielly Palma. A ela coube pesquisar o impacto dos agrotóxicos em
mães que estavam amamentando na cidade de Lucas do Rio Verde. A seguir, o
relato:
Lucas do
Rio Verde é um dos maiores produtores de grãos do Mato Grosso, estado vitrine
do agronegócio no Brasil. Apesar de apresentar alto IDH (índice de
desenvolvimento humano), a exposição de um morador a agrotóxicos no município
durante um ano é de aproximadamente 136 litros por habitante, quase 45 vezes
maior que a média nacional — de 3,66 litros.
Desde 2006,
ano em que ocorreu um acidente por pulverização aérea que contaminou toda a
cidade, Lucas do Rio Verde passou a fazer parte de um projeto de pesquisa
coordenado pelo médico e doutor em toxicologia, Wanderlei Pignatti, em parceria
com a Fiocruz. A pesquisa avaliou os resíduos de agrotóxicos em amostras de
água de chuva, de poços artesianos, de sangue e urina humanos, de anfíbios, e
do leite materno de 62 mães. A pesquisa referente às mães coube à mestranda da
Universidade Federal do Mato Grosso, Danielly Palma.
A pesquisa
revelou que 100% das amostras indicam a contaminação do leite por pelo menos um
agrotóxico. Em todas as mães foram encontrados resíduos de DDE, um metabólico
do DDT, agrotóxico proibido no Brasil há mais de dez anos. Dos resíduos
encontrados, a maioria são organoclorados, substâncias de alta toxicidade,
capacidade de dispersão e resistência tanto no ambiente quanto no corpo humano.
No dia
seguinte à defesa de sua tese, Danielly concedeu uma entrevista ao Viomundo.
Viomundo – A
sua pesquisa faz parte de um projeto maior?
Danielly Palma – Minha pesquisa foi um subprojeto de uma avaliação que foi
realizada em Lucas do Rio Verde e eu fiquei responsável pelo indicador leite
materno. Mas a pesquisa maior analisou o ar, água de chuva, sedimentos, água de
poço artesiano, água superficial, sangue e urina humanos, alguns dados
epidemiológicos, má formação em anfíbios.
Viomundo –
E essas pesquisas começaram quando e por quê?
Danielly Palma – Começamos em 2007. A minha parte foi no ano passado, de
fevereiro a junho. Lucas do Rio Verde foi escolhido porque é um dos grandes
municípios produtores matogrossenses, tanto de soja quanto de milho e,
consequentemente, também é um dos maiores consumidores de agrotóxicos. Em 2006,
quando houve um acidente com um desses aviões que fazem pulverização aérea em
Lucas, o professor Pignati, que foi o coordenador regional do projeto, foi
chamado para fazer uma perícia no local junto com outros professores aqui da
Universidade Federal do Mato Grosso. Então, começaram a entrar em contato com o
pessoal e viram a necessidade de desenvolver projetos para ver a que nível
estava a contaminação do ambiente e da população de Lucas.
Viomundo –
E qual é o nível de contaminação em que a população de Lucas se encontra hoje?
O que sua pesquisa aponta?
Danielly Palma – Quanto ao leite materno, 100% das amostras indicaram
contaminação por pelo menos um tipo de substância. O DDE, que é um metabólico
do DDT, esteve presente em 100%, mas isso indica uma exposição passada porque o
DDT não é utilizada desde 1998, quando teve seu uso proibido. Mas 44% das
amostras indicaram o beta-endossulfam, que é um isômero do agrotóxico
endossulfam, ainda hoje utilizado. Ele teve seu uso cassado, mas até 2013 tem
que ir diminuindo, que é quando a proibição será definitiva. É preocupante, porque
é um organoclorado que ainda está sendo utilizado e está sendo excretado no
leite materno.
Viomundo –
Foram essas duas substâncias as registradas?
Danielly Palma – Não, tem mais. Foi o DDE em 100% das mães [que estão
amamentando]; beta-endossulfam em 44%; deltametrina, que é um piretróide,
em 37%; o aldrin em 32%; o alpha-endossulfam, que é outro isômero do
endossulfam, em 32%; alpha-HCH, em 18% das mães, o DDT em 13%;
trifularina, que é um herbicida, em 11%; o lindano, em 6%.
Viomundo –
E o que essas susbstâncias podem causar no corpo humano?
Danielly Palma – Todas essas substâncias tem o potencial de causar má formação
fetal, indução ao aborto, desregulamento do sistema endócrino — que é o sistema
que controla todos os hormônios do corpo — então pode induzir a vários
distúrbios. Podem causar câncer, também. Esses são os piores problemas.
Viomundo –
Você disse que as mães foram expostas há mais de dez anos. As substâncias
permanecem no corpo por muito tempo?
Danielly Palma – Permanecem. No caso dos organoclorados, de todas as
substâncias analisadas, o endossulfam é o único que ainda está sendo utilizado.
Desde 1998 os organoclorados foram proibidos, a pesquisa foi realizada em 2010,
e a gente encontrou níveis que podem ser considerados altos. Mesmo tendo sido
uma exposição passada, como as substâncias ficam muito tempo no corpo, esses
sintomas podem vir a longo prazo.
Viomundo –
Durante a sua defesa de mestrado, em que essa pesquisa foi apresentada, os
membros da banca ressaltaram o quanto você sofreu para realizar a pesquisa.
Quais foram as maiores dificuldades?
Danielly Palma – A minha maior dificuldade foi em relação à validação do
método. Porque, quando você vai pesquisar agrotóxicos, tem de ter uma precisão
muito grande. Como são dez substâncias com características diferentes, quando
acertava a validação para uma, não dava certo para outra. Então, para ter um
método com precisão suficiente para a gente confiar nos resultados, para todas
as substâncias, foi um trabalho que exigiu muita força de vontade e tempo. Foi
praticamente um ano só para validar o método.
Viomundo –
Essas mães que foram contaminadas exercem ou exerceram que tipo de atividade?
Como elas foram expostas ao agrotóxico?
Danielly Palma – Das 62 mulheres que eu entrevistei, apenas uma declarou ter
contato direto com o agrotóxico. Ela é engenheira agrônoma e é responsável por
um armazém de grãos. Três mães residem na zona rural, trabalhando como
domésticas nas casas dos donos das fazendas. É difícil dizer que quem está
longe da lavoura não está exposto em Lucas do Rio Verde, pela localização da
cidade, com as lavouras ao redor. Mas a maioria das entrevistadas trabalha no
comércio, são professoras do município, algumas donas de casa, mas não são
expostas ocupacionalmente. A questão é o ambiente do município.
Viomundo –
Mas a contaminação se dá pelo ar, pela alimentação?
Danielly Palma - A alimentação é uma das principais vias de exposição.
Mas, por se tratar de clorados, que já tiveram seu uso proibido, então eu posso
dizer que o ambiente é o que está expondo, porque também se acumulam no
ambiente. No caso da deltametrina e do endossulfam, que ainda são utilizados, o
uso atual deles é que está causando a contaminação. Mas, nos usos passados [dos
agrotóxicos agora proibidos], a causa provavelmente foi a exposição à
alimentação — na época em que eram utilizados — e o próprio meio ambiente
contaminado.
Viomundo –
Quais são as principais propriedades dessas substâncias encontradas?
Danielly Palma – Os organoclorados têm em comum entre si os átomos de cloro na
sua estrutura, o que dá uma grande toxicidade a eles. Eles têm alta capacidade
de se armazenar na gordura, alta pressão no vapor e o tempo de meia-vida deles
é muito longo, por isso que para se degradar demora muito tempo. São altamente
persistentes no ambiente, tanto nos sedimentos, solo, corpo humano, e têm a
capacidade de se dispersar. Tanto que no Ártico, onde eles nunca foram
aplicados, são encontrados resíduos de organoclorados.
Viomundo –
O professor Pignati comentou que a Secretaria da Saúde dificultou um pouco a
pesquisa de vocês, mas que vocês fizeram questão da participação do governo.
Por quê?
Danielly Palma – Nós vimos a importância da participação deles porque, quando a
exposição da população está num nível elevado e está tendo uma incidência maior
de certas doenças, é lá na ponta que isso vai estourar, é no PSF (Programa
Saúde da Família). Então, a gente queria que a Secretaria da Saúde acompanhasse
para ver em que nível de exposição essa população está e para que tome
medidas. Para que recebam essas pessoas com algum problema de saúde e saibam
diagnosticar, saibam de onde está vindo e o porquê de tantas incidências de
doenças no município.
Viomundo –
Se a maioria dessas substâncias não está mais sendo utilizada, o que pode ser
feito daqui para frente para diminuir o impacto delas sobre o ambiente e a
saúde?
Danielly Palma – Em relação a essas substâncias que não estão sendo mais
utilizadas, infelizmente, não temos mais nada a fazer. Já foram lançadas no
ambiente e nos organismos das pessoas. A gente pode parar e pensar no modelo de
desenvolvimento que está sendo posto, com esse alto consumo de agrotóxico e
devemos tomar cuidado com as substâncias que ainda estão sendo utilizadas para
tentar evitar um mal maior.
Viomundo –
Como que o agrotóxico pode afetar o bebê?
Danielly Palma – Esses agrotóxicos são lipofílicos e se acumulam no tecido
gorduroso, então ficam no organismo e passam para o sangue da mãe. Através da
placenta, como há troca de sangue entre mãe e feto, acabam atingindo o feto. E
alguns tem a capacidade de passar a barreira da placenta e atingir o feto.
Durante a lactação, o agrotóxico acaba sendo excretado pelo leite humano.
Viomundo –
Então, mesmo que não amamente o filho, ele pode nascer com resíduo de
agrotóxico?
Danielly Palma – Sim, isso se a contaminação da mãe for muito elevada.
Viomundo –
Foi o caso nas mães [pesquisadas] de Lucas do Rio Verde?
Danielly Palma – Alguns níveis [encontrados] consideramos altos, até porque o
leite humano deveria ser isento de todas essas substâncias. Deveria ser o
alimento mais puro do mundo. E a gente vê que isso não ocorre, tanto nos meus
resultados quanto em trabalhos realizados no mundo inteiro que evidenciaram
essa contaminação. A criança acaba sendo afetada desde a vida uterina e depois
na amamentação é mais uma quantidade de agrotóxicos que ela vai receber. Mas é
sempre bom lembrar do risco-benefício do aleitamento materno. Nunca se deve
incentivar a mãe a parar de amamentar porque seu leite está contaminado. As
vantagens do aleitamento materno são muito maiores do que os riscos da carga
contaminante que o leite pode vir a ter.
Viomundo –
Quais os riscos dessa contaminação?
Danielly Palma – Os riscos saberemos somente com um acompanhamento a longo
prazo dessas crianças. O que pode acontecer são problemas no desenvolvimento
cognitivo e, dependendo da carga que o bebê receba desde a gestação, pode
causar má formação, que pode só ser percebida mais tarde.
Viomundo –
Esse acompanhamento dos efeitos dos agrotóxicos no corpo humano já foi feito ou
ainda é uma coisa a fazer?
Danielly Palma – Quanto ao sistema endócrino, existem evidências. Estudos
comprovaram a interferência dos agrotóxicos. Quanto a câncer, má formação e
ações teratogênicas (anomalias e malformações ligadas a uma perturbação do
desenvolvimento embrionário ou fetal), estudos realizados em animais
apontam para uma possivel ação dos agrotóxicos nesse sentido. Mas no ser humano
não tem como você testar uma única substância. Quando fazem pesquisas, sempre
são encontradas mais de uma substância no organismo e, portanto, não se sabe se
é uma ação conjunta dessas substâncias que elevou aquele efeito ou se foi a
ação de uma substância apenas.
Viomundo –
Os resultados da pesquisa são alarmantes?
Danielly Palma – Foram alarmantes, mas ao mesmo tempo já esperávamos por esse
resultado, até porque já tínhamos em mãos resultados da parte ambiental. Vimos
que a exposição da população estava muito alta. Com o ambiente contaminado
daquela forma, já era esperado encontrar a contaminação do leite, uma vez que o
ambiente influencia na contaminação humana também.
Viomundo
– O que será feito com esses resultados?
Danielly Palma – Os resultados já foram encaminhados às mães e, no início do
projeto, assumimos o compromisso de, no final, nos reunirmos com elas e
explicarmos os resultados. Esperamos que as autoridades do município e de todas
as regiões produtoras acordem para o modelo de desenvolvimento que eles estão
adotando, porque não adianta ter um IDH alto, ter boa educação e sistema de
saúde, se a qualidade de vida em termos de exposição ambiental é péssima.
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