Um novo estudo sugere que a gordura cria dependência como cocaína e heroína.
Quando alguém menciona drogas viciantes, o que vem à mente são substâncias ilegais como cocaína, crack ou heroína. Pelo que se sabe, não há níveis seguros para o consumo dessas drogas. A orientação é ficar longe delas. Desde a semana passada, a ciência médica acrescentou à lista de produtos capazes de provocar dependência algo assustadoramente próximo de nós: a comida gordurosa. Um estudo com ratos publicado na revista Nature Neurosciencesugere que o consumo de alimentos ricos em gordura leva ao desenvolvimento de um tipo de dependência parecida com a que afeta os viciados em cocaína ou heroína. O cérebro dos ratos superalimentados, assim como nos dependentes químicos, apresenta uma queda acentuada nos níveis de substâncias responsáveis pelas sensações de prazer, conhecidas como receptores de dopamina. Com menos receptores, o organismo precisa de quantidades de gordura cada vez maiores para que o cérebro registre satisfação. É o mesmo mecanismo cerebral do vício humano em drogas. A pesquisa, feita apenas em ratos, confirmou em laboratório pela primeira vez aquilo de que muitos especialistas já suspeitavam: certos tipos de comida viciam.
“Espero que este estudo mude a maneira como muitos pensam sobre comida”, diz Paul Johnson, coautor do estudo realizado no Scripp Research Institute, da Flórida. “Ele demonstra como a oferta de comida pode produzir superalimentação e obesidade.”
Ao vincular dependência química à alimentação, a pesquisa divulgada na semana passada lança uma série de novas questões – e reanima velhos fantasmas – no debate sobre comida. Levada às últimas consequências, ela pode até mesmo sugerir que os consumidores são manipulados pela indústria do fast-food do mesmo modo como jovens são aliciados por traficantes na porta das escolas. Trata-se do tipo de estudo que traz alento àqueles que acreditam que somos reféns de uma indústria alimentar inescrupulosa, incapaz de manifestar uma preocupação genuína com a saúde – e afirmam que o cidadão precisa de regras quase policiais para controlar a comida, assim como precisa da polícia antidrogas.
A diretora do Nida (o instituto do governo americano contra o abuso de drogas), Nora Volkow, chegou a afirmar que o novo estudo ajudará a aplicar o conhecimento adquirido no combate à dependência química ao tratamento da obesidade. Depois de proibir o fumo e limitar o consumo e a propaganda de álcool, a brigada dos militantes pelo controle alimentar passa, portanto, a dispor de mais argumentos para defender restrições à batata frita ou ao churrasco. “É improvável que proíbam a picanha como fizeram com a cocaína”, diz o neurocientista Jorge Moll, coordenador do Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino, do Rio de Janeiro. “Mas o experimento com ratos sugere que deixar de comer compulsivamente não depende só de força de vontade.”
Afinal, o que há de fantasia e de realidade nessa visão? Estaríamos indefesos diante da gordura como diante do tabaco – e seu consumo deveria ser restrito? Até que ponto a indústria alimentar tem tanto poder de controlar o que come o consumidor? Não é possível a cada um de nós, de acordo com nosso livre-arbítrio, escolher uma alimentação saudável e viver comendo bem?
Para responder a essas questões, é preciso analisar de perto as evidências científicas. Os próprios experimentos com ratos sobre o vício oferecem evidências ambivalentes. Em seu estudo, Johnson e seu colega, Paul Kenny, dividiram os animais em três grupos. O primeiro grupo foi alimentado com ração comum. O segundo teve acesso restrito a comida gordurosa, comparável à que encontramos numa lanchonete. O terceiro teve acesso quase ilimitado. Os ratos do último grupo se esbaldaram numa comilança compulsiva. Ao final de 40 dias, estavam mais gordos e, além do maior peso, foi observada alteração nos centros cerebrais de prazer similar à de ratos drogados com substâncias como cocaína e heroína.
Mas outra experiência realizada em 1981, também com ratos e tóxicos, lança outra luz sobre o tema. Ela foi conduzida pelo psicólogo canadense Bruce Alexander, da Universidade Simon Fraser. Alexander construiu um verdadeiro parque de ratos, com 8,8 metros quadrados. O lugar era aquecido, com brinquedos coloridos e bastante espaço. Os ratos do parque e outro grupo de ratos – estes engaiolados – receberam água com morfina por 57 dias, até ficar viciados. Depois, passaram a ter água pura como opção. O grupo enjaulado continuou consumindo água com morfina. Os ratos do parque reduziram gradualmente o consumo da droga. Apesar dos sintomas de abstinência, quando recebiam água com morfina, preferiam beber água pura. Alexander usou a experiência para demonstrar que, num ambiente saudável, os ratos – e por analogia talvez as pessoas – conseguem se livrar mais facilmente de um vício. Basta ter condições de fazer a escolha certa.
Convivemos com substâncias potencialmente perigosas o tempo inteiro – álcool, tabaco, remédios e uma infinidade de substâncias ilegais –, sem que nos tornemos necessariamente reféns delas. Com a comida não é diferente: tudo depende das escolhas individuais e das circunstâncias. Há diferentes predisposições ao vício, diz o psiquiatra Marcelo Niel, da Universidade Federal de São Paulo. Alguns podem usar drogas recreativamente sem se viciar, outros ficam totalmente dependentes. Essa diferença depende de componentes genéticos e ambientais, ainda não completamente esclarecidos. O comportamento compulsivo seria uma válvula de escape para ativar centros de prazer. “Em alguns pacientes que comem compulsivamente, se tiramos a comida, eles podem desenvolver sintomas psiquiátricos mais pronunciados”, diz Niel.
Há, portanto, uma dose de oportunismo nas comparações entre gordura e drogas e na defesa de restrições draconianas à indústria alimentar. O ativista americano Michael Pollan ficou conhecido com o livroO dilema do onívorocomo um dos maiores críticos da forma como é feita a comida que chega a nossa mesa. Pollan e o italiano Carlo Petrini, fundador do movimento Slow Food (o oposto do fast-food), afirmam que a indústria não para de nos empurrar porcarias goela abaixo. Mas mesmo Pollan acredita que, para combater a obesidade e a má alimentação, o melhor caminho é respeitar o livre-arbítrio. Em seu novo livro,Food rules (Regras da alimentação), lançado nos Estados Unidos no final de 2009, ele sugere que retomemos o controle de nossa vida alimentar por meio da cozinha tradicional, que nos foi legada por nossos pais e avós.
O trabalho de Pollan fornece um dos alicerces do movimento global pela revalorização da comida natural. Ele se propõe a responder a uma questão pertinente à alimentação em qualquer país industrializado: abandonar os modos antigos à mesa e ceder às novidades do mundo moderno faz bem ou faz mal à saúde? Ele já tinha vendido até a semana passada mais de 700 mil exemplares nos EUA. O livro, que não tem data para sair no Brasil, se organiza em torno de 64 frases que qualquer adolescente instruído é capaz de entender (20 delas estão reproduzidas no fim da página). Nos textos curtos que acompanham cada regra, Pollan faz parecer que ninguém precisa acompanhar o noticiário científico nem ouvir nutricionistas para fazer escolhas alimentares certas. Para ele, comer bem é mais simples do que a brigada policial da nutrição ou a indústria querem que a gente pense. Basta se guiar pelas tradições, confiar na cultura alimentar passada de mãe para filho e abandonar tudo o que cheire a ciência moderna como principal referência quando se trata de comida. “Ao longo de quase toda a história da humanidade, os homens acharam a resposta sobre o que comer sem a ajuda de especialistas”, diz Pollan.
Em seu livro anterior, Em defesa da comida, Pollan defendia uma tese parecida. Para ele, a divulgação fragmentada das descobertas da ciência sobre o papel dos nutrientes na saúde humana confunde mais do que ajuda. Ele chama isso de “nutricionismo”. A indústria, afirma Pollan, aproveita as descobertas científicas da semana e lança no mercado alimentos com substâncias pretensamente mágicas. Esse posto já foi da gordura ômega 3, presente naturalmente em peixes como salmão e adicionada artificialmente em algumas marcas de óleo de cozinha. O argumento científico subjacente é que, segundo algumas pesquisas, o consumo do ômega 3 está associado à redução de doenças cardiovasculares. Mas a indústria não diz, segundo Pollan, que a substância não faz milagres sozinha, sobretudo quando integrada a uma dieta desbalanceada. “Quem se preocupa com a saúde provavelmente deveria evitar produtos que fazem alegações quanto a benefícios para a saúde”, diz Pollan.
Iniciada no exterior, a pregação pela alimentação tradicional e natural já chegou ao Brasil. A paulistana Ceni Salles é uma das primeiras brasileiras a investir nela. Em sua infância, numa chácara em Suzano, na região rural do Estado, conviveu com 1.200 espécies de vegetais. Nos anos 80, criou um restaurante natural, Cheiro Verde, e depois uma loja de alimentos orgânicos, o Empório Siriuba. Nos últimos anos, diante da demanda, especializou-se em prestar consultoria para restaurantes e hotéis, montando cardápios. Hoje, é uma das líderes do movimento Slow Food no Brasil. “Adoro os livros do Pollan”, diz ela.
Há duas semanas, o encontro Terra Madre reuniu em Brasília 700 produtores, chefs famosos e pesquisadores da área de alimentos. Eles pregam a convivência entre produtores e consumidores. “Somos todos coprodutores”, diz Ceni. “Nossas escolhas como consumidores orientam o mercado produtor.” Diversas organizações estão se mobilizando para promover o consumo consciente de alimentos. Numa pesquisa do Datafolha divulgada no mês passado, 75% dos pais de crianças entre 3 e 11 anos afirmaram estar preocupados com a qualidade da alimentação dos filhos e com a enorme oferta de guloseimas industrializadas.
Embora tenha seus méritos, a tese anti-industrial de Pollan resvala no radicalismo. Não existe, na vida real, uma divisão absoluta entre o tradicional e o inovador ou entre o natural e o industrializado. A indústria de alimentos não é homogênea. Cada empresa trabalha de acordo com valores diferentes. Não é difícil encontrar, no mesmo supermercado, exemplos de alimentos bons e ruins para a saúde. Ao contrário do que reza o radicalismo de Pollan, produtos inovadores inimagináveis no tempo de nossas avós não são necessariamente nocivos. Tampouco o contrário é verdadeiro. Feijoada completa e leitão à pururuca, embora tradicionais e deliciosos, não são os pratos mais saudáveis em qualquer cardápio.
A industrialização dos alimentos contribuiu para melhorar a saúde. O médico nutrólogo Durval Ribas Filho, presidente da Associação Brasileira de Nutrologia, afirma que a industrialização aumentou a expectativa de vida no mundo ocidental. Em 1900, a longevidade média no Brasil era de 44 anos. Hoje, é de 72, com o aumento da obesidade. Antes da industrialização, todos os alimentos estavam à mercê do tempo e apodreciam mais rapidamente. Nem todos sabiam o momento certo de jogar a comida fora. “A insegurança alimentar predominava”, diz Ribas. No contexto em que se misturam boas e más inovações, a contribuição de Pollan é nos alertar para a necessidade de escolher com cuidado aquilo que comemos. A melhor maneira de comer, aquela que permite evitar a obesidade e preservar a saúde, é escolher o que há de melhor entre as várias opções. Da comida feita no fogão a lenha à prateleira do supermercado, hoje há mais chances de escolher alimentos de qualidade. Ninguém precisa consumir a gordura que provoca obesidade e dependência química em ratos. A informação sobre a indústria de produção e distribuição de comida é a melhor forma que temos para exercer de maneira saudável nosso direito de escolha e nosso livre-arbítrio. Ela ainda é nossa melhor arma contra qualquer vício.
O trabalho de Pollan fornece um dos alicerces do movimento global pela revalorização da comida natural. Ele se propõe a responder a uma questão pertinente à alimentação em qualquer país industrializado: abandonar os modos antigos à mesa e ceder às novidades do mundo moderno faz bem ou faz mal à saúde? Ele já tinha vendido até a semana passada mais de 700 mil exemplares nos EUA. O livro, que não tem data para sair no Brasil, se organiza em torno de 64 frases que qualquer adolescente instruído é capaz de entender (20 delas estão reproduzidas no fim da página). Nos textos curtos que acompanham cada regra, Pollan faz parecer que ninguém precisa acompanhar o noticiário científico nem ouvir nutricionistas para fazer escolhas alimentares certas. Para ele, comer bem é mais simples do que a brigada policial da nutrição ou a indústria querem que a gente pense. Basta se guiar pelas tradições, confiar na cultura alimentar passada de mãe para filho e abandonar tudo o que cheire a ciência moderna como principal referência quando se trata de comida. “Ao longo de quase toda a história da humanidade, os homens acharam a resposta sobre o que comer sem a ajuda de especialistas”, diz Pollan.
Em seu livro anterior, Em defesa da comida, Pollan defendia uma tese parecida. Para ele, a divulgação fragmentada das descobertas da ciência sobre o papel dos nutrientes na saúde humana confunde mais do que ajuda. Ele chama isso de “nutricionismo”. A indústria, afirma Pollan, aproveita as descobertas científicas da semana e lança no mercado alimentos com substâncias pretensamente mágicas. Esse posto já foi da gordura ômega 3, presente naturalmente em peixes como salmão e adicionada artificialmente em algumas marcas de óleo de cozinha. O argumento científico subjacente é que, segundo algumas pesquisas, o consumo do ômega 3 está associado à redução de doenças cardiovasculares. Mas a indústria não diz, segundo Pollan, que a substância não faz milagres sozinha, sobretudo quando integrada a uma dieta desbalanceada. “Quem se preocupa com a saúde provavelmente deveria evitar produtos que fazem alegações quanto a benefícios para a saúde”, diz Pollan.
Iniciada no exterior, a pregação pela alimentação tradicional e natural já chegou ao Brasil. A paulistana Ceni Salles é uma das primeiras brasileiras a investir nela. Em sua infância, numa chácara em Suzano, na região rural do Estado, conviveu com 1.200 espécies de vegetais. Nos anos 80, criou um restaurante natural, Cheiro Verde, e depois uma loja de alimentos orgânicos, o Empório Siriuba. Nos últimos anos, diante da demanda, especializou-se em prestar consultoria para restaurantes e hotéis, montando cardápios. Hoje, é uma das líderes do movimento Slow Food no Brasil. “Adoro os livros do Pollan”, diz ela.
Há duas semanas, o encontro Terra Madre reuniu em Brasília 700 produtores, chefs famosos e pesquisadores da área de alimentos. Eles pregam a convivência entre produtores e consumidores. “Somos todos coprodutores”, diz Ceni. “Nossas escolhas como consumidores orientam o mercado produtor.” Diversas organizações estão se mobilizando para promover o consumo consciente de alimentos. Numa pesquisa do Datafolha divulgada no mês passado, 75% dos pais de crianças entre 3 e 11 anos afirmaram estar preocupados com a qualidade da alimentação dos filhos e com a enorme oferta de guloseimas industrializadas.
Embora tenha seus méritos, a tese anti-industrial de Pollan resvala no radicalismo. Não existe, na vida real, uma divisão absoluta entre o tradicional e o inovador ou entre o natural e o industrializado. A indústria de alimentos não é homogênea. Cada empresa trabalha de acordo com valores diferentes. Não é difícil encontrar, no mesmo supermercado, exemplos de alimentos bons e ruins para a saúde. Ao contrário do que reza o radicalismo de Pollan, produtos inovadores inimagináveis no tempo de nossas avós não são necessariamente nocivos. Tampouco o contrário é verdadeiro. Feijoada completa e leitão à pururuca, embora tradicionais e deliciosos, não são os pratos mais saudáveis em qualquer cardápio.
A industrialização dos alimentos contribuiu para melhorar a saúde. O médico nutrólogo Durval Ribas Filho, presidente da Associação Brasileira de Nutrologia, afirma que a industrialização aumentou a expectativa de vida no mundo ocidental. Em 1900, a longevidade média no Brasil era de 44 anos. Hoje, é de 72, com o aumento da obesidade. Antes da industrialização, todos os alimentos estavam à mercê do tempo e apodreciam mais rapidamente. Nem todos sabiam o momento certo de jogar a comida fora. “A insegurança alimentar predominava”, diz Ribas. No contexto em que se misturam boas e más inovações, a contribuição de Pollan é nos alertar para a necessidade de escolher com cuidado aquilo que comemos. A melhor maneira de comer, aquela que permite evitar a obesidade e preservar a saúde, é escolher o que há de melhor entre as várias opções. Da comida feita no fogão a lenha à prateleira do supermercado, hoje há mais chances de escolher alimentos de qualidade. Ninguém precisa consumir a gordura que provoca obesidade e dependência química em ratos. A informação sobre a indústria de produção e distribuição de comida é a melhor forma que temos para exercer de maneira saudável nosso direito de escolha e nosso livre-arbítrio. Ela ainda é nossa melhor arma contra qualquer vício.
Fonte: Revista Época
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