Consuma
menos gordura, coma tantas porções de carboidratos e não passe de 2 mil
calorias diárias. As clássicas recomendações dos nutricionistas estão com os
dias contados. O Ministério da Saúde acaba de lançar uma cartilha que promete
revolucionar a forma como o brasileiro vê a alimentação. Em vez de
classificá-los simplesmente como carboidratos, proteínas e lipídeos, o novo Guia
Alimentar para a População Brasileira faz uma divisão entre alimentos
naturais, processados e ultraprocessados. É nisso que as pessoas devem prestar
atenção na hora de escolher o que vão pôr no prato.
Nem
todo alimento de peixe, por exemplo, é saudável. O fresco é. Contém boas doses
de proteína, vitaminas e minerais. O atum e a sardinha em lata estão um degrau
abaixo. Eles recebem da indústria altas quantidades de sal e óleo para serem
conservados. Apesar de manter parte dos nutrientes, o processamento altera o
alimento original: o óleo aumenta a densidade calórica do peixe e o excesso de
sódio é associado a doenças do coração. O peixe empanado já é outra história.
Para fazer os nuggets, a indústria usa gordura vegetal hidrogenada, corantes,
realçadores de sabor, ingredientes prejudiciais à saúde. São tantas adições,
que, quando o alimento é ultraprocessado, não sobra praticamente nada do
original — apenas o nome, o que dá uma falsa impressão a quem consome o
produto.
O
mesmo raciocínio vale para leite, queijo e bebida láctea; milho verde, em
conserva e cereal matinal; trigo (em farinha ou em grão), pão caseiro e pão de
forma (inclusive o integral).
Para
manter a saúde, a regra de ouro do guia é priorizar os alimentos naturais
ou minimamente processados, como o tradicional arroz com feijão. Óleos, sal e
açúcar, com moderação, temperam sem alterar a qualidade nutricional do prato.
As conservas, os queijos e os pães artesanais entram em pequenas quantidades, para
compor pratos baseados em alimentos frescos. Já produtos como lasanha pronta,
macarrão instantâneo e embutidos devem ser evitados.
Ricos
em açúcares, gorduras, com teor elevado de sódio, pouca fibra e alta densidade
energética, os ultraprocessados têm uma composição nutricional desbalanceada.
Estão diretamente relacionados à obesidade e a outras doenças crônicas, como
hipertensão, diabetes e vários tipos de câncer.
—
Essa abordagem que deixa claro o quanto os produtos ultraprocessados não são
saudáveis é inédita — afirma Elisabetta Recine, coordenadora do Observatório de
Políticas de Segurança Alimentar e Nutricional da Universidade de Brasília
(UnB).
Não
bastam nutrientes
Preocupados
com o avanço da obesidade, os especialistas perceberam que não bastava só
orientar ingerir mais ou menos carboidratos, proteínas, gorduras. Até porque
isso pode levar a um pensamento errado de que basta consumir qualquer produto
que tenha os nutrientes para estar bem alimentado.
Hoje
é fácil encontrar embalagens de bebidas lácteas, achocolatados e barrinhas de
cereais anunciando vitaminas, minerais e fibras. Esses nutrientes, porém, não
têm os mesmos efeitos do que os encontrados, por exemplo, numa maçã. É o
alimento em si — com toda a sinergia dos seus compostos — que faz a diferença
para a saúde, e não o nutriente isolado.
—
É comprovado que os nutrientes adicionados pela indústria não reproduzem os
mesmos efeitos que os de alimentos in natura. Eles podem até ser danosos —
ressalta Maria Laura Louzada, pesquisadora do Núcleo de Pesquisas
Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens) da Universidade de São Paulo, que
participou do projeto.
Os
industrializados, porém, estão cada dia mais presentes na mesa nacional. Por
isso, a nova classificação do guia — que não coloca mais no mesmo grupo o
arroz e o cereal matinal, por exemplo — ganha importância.
O
feijão, segundo dados recentes do IBGE, ainda é o alimento preferido dos
brasileiros, mas vem perdendo espaço dos anos 70 para cá. E não só ele.
Pesquisas mostram que alimentos tradicionais, como arroz, carne, leite, ovos,
tiveram um decréscimo intenso. Em compensação, refrigerante, salsicha, sorvetes
e comida pronta congelada começaram a encher a geladeira das famílias.
Cerca
de um quarto das crianças de 5 a 10 anos comem biscoitos recheados, balas e
doces praticamente todo dia, segundo a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF)
de 2009, do IBGE. O refrigerante é outra preferência nacional: 23,3% dos
brasileiros tomam a bebida, ao menos, cinco vezes por semana. Por outro lado,
só 26,3% comem a quantidade adequada de hortaliças e frutas.
Um
dado interessante é que a compra de sal, açúcar e óleo, ingredientes básicos
para cozinhar, também reduziu. Isso é um péssimo sinal. Mostra é que estamos
parando de comer comida de verdade. Os ultraprocessados estão tomando o lugar
dos alimentos tradicionais. E o preço não justifica a troca: no Brasil, ainda é
mais barato preparar refeições em casa que consumir produtos prontos. Na
Inglaterra, por exemplo, isso não acontece.
É
nos países de renda baixa e média que os ultraprocessados encontram mais
terreno para crescer. No Brasil, saltaram de menos de 20% nos anos 1980 para,
em 2009, 28% do total das calorias ingeridas. Bem abaixo, ainda, dos Estados
Unidos, Canadá e Reino Unido. Nesses países, o índice ultrapassa os 50%.
Com
70% ainda de calorias vindas de alimentos frescos, o Brasil tem uma
janela de oportunidade para reverter o quadro:
—
Os países que têm uma cultura culinária mais forte, como Brasil e França, têm
menos uso hoje de industrializados. A força da alimentação tradicional é uma
das barreiras para frear essa transição — afirma Maria Laura.
Cultura
à mesa
Com
linguagem fácil, o novo guia, elaborado em parceria com o Nupens (USP) e com a
Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), pretende alcançar toda a população,
e não só os profissionais da saúde. O texto está disponível na internet e os 60
mil exemplares impressos vão para hospitais e escolas. Segundo o Ministério da
Saúde, o próximo passo é desenvolver estratégias para divulgar o conteúdo,
entre elas vídeos e cursos de autoaprendizagem.
Outra
originalidade do guia é que ele valoriza a cultura culinária de todas as
regiões. Fala de comida caseira, e não só de alimentos isolados. Essa novidade
brasileira tem gerado repercussão internacional.
Um
dos mais importantes sites americanos de notícias, o Vox, classificou o guia
brasileiro como o melhor do mundo: “Eles não agrupam os alimentos em grupos. Em
vez disso, focam em refeições e estimulam a cozinhar em casa”. Michael Pollan,
autor de livros como Em Defesa da Comida, classificou o guia como radical.
Marion Nestlé, professora da New York University, elogiou o texto por ser
baseado em comida. E o jornal da Associação Mundial de Nutrição em Saúde
Pública (WPHNA, na sigla em inglês) destacou, na edição de dezembro, o foco em
refeições e nas dimensões sociais e culturais da alimentação.
O
guia mostra que é possível ter uma alimentação saudável seguindo a tradição da
cozinha brasileira. As recomendações foram baseadas no que comem no dia a dia
os 20% de brasileiros que, segundo a POF 2009, mantêm hábitos alimentares
tradicionais. Entre os exemplos, café com leite, tapioca, cuscuz, a dupla arroz
com feijão, farinha de mandioca, angu, pernil, jiló, abóbora e até feijoada.
—
Tem uma sabedoria na cultura. Tanto na comida quanto nas festas e religiões —
diz Sônia Hirsch, jornalista e escritora de 19 livros sobre alimentação e
saúde, como Meditando na Cozinha.
Em
um dos capítulos, o guia reforça que essa sabedoria está presente também quando
se combinam num prato alimentos típicos do país. Por isso, preparar uma
refeição com arroz, feijão, carne e mandioca, por exemplo, é bem diferente —
para a saúde, a cultura, a sociedade — do que comprar lasanha congelada.
—
É importante manter uma relação verdadeira com a comida, porque o corpo é de
verdade, a mente é de verdade. E comida de verdade traz benefícios inegáveis à
saúde, porque ela não tem só nutrientes, tem energia também — destaca Sônia.
Onde
e como são tão importantes quanto o que comer
O
que muita gente ainda não se dá conta é de que o ambiente é capaz de decidir o
que as pessoas vão comer. Em frente à TV, no ônibus ou na rua, as escolhas, em
geral, são alimentos prontos para consumo, como biscoitos, doces, salgadinhos
de pacote. Afinal, não exigem garfo nem faca e estão disponíveis em todo lugar:
da farmácia ao posto de gasolina. À mesa, porém, come-se mais comida “de
verdade”, como frango, macarrão e legumes. O modo de comer também é mais
saudável: envolve cozinhar, colocar a mesa e, se possível, compartilhar o
momento.
—
O ambiente está o tempo todo colocando em risco a nossa decisão de fazer
escolhas saudáveis. A importância desse aspecto é uma novidade do guia — avalia
a professora Elisabetta Recine, da UnB.
Comer
mais ou menos, fator-chave para o ganho de peso, também tem a ver com o
ambiente. Ingere menos calorias quem come com atenção, devagar, em local
tranquilo. A distração — que hoje não é só da TV: tem celular, tablet, notebook
— atrapalha o cérebro a entender quando é hora de parar de comer.
—
É muito difícil sentir a mesma saciedade comendo duas bolachas ou as mesmas
calorias num prato de comida. O cérebro fica enganado com o volume menor e aí
comemos mais — explica Maria Laura Louzada, da USP.
Quem
já tentou comer só uma batatinha do pacote sabe que controlar a vontade é um
desafio. Também, pudera. Açúcares, gorduras e aditivos deixam os
ultraprocessados extremamente saborosos. E as embalagens são gigantes. “É maior
o risco do consumo involuntário de calorias e maior, portanto, o risco de
obesidade”, diz o guia.
—
O problema da obesidade é muito complexo. Envolve o ato de comer, o ambiente,
os padrões de consumo — diz Maria Laura.
O
guia tem o objetivo também de impedir o avanço da doença no Brasil. Se a fome
até pouco tempo atrás assustava o país, hoje o que preocupa é o excesso de
peso.
Pesquisas
do IBGE mostram um aumento expressivo e contínuo da obesidade desde a década de
80. Os últimos dados, de 2013, indicam que metade dos adultos está acima do
peso ideal e 17,5% estão obesos. Entre as crianças, 33% estão acima do peso.
Com esses números, já somos o quinto lugar no ranking mundial do excesso de
peso. Realidade que pesa também sobre os cofres públicos: o SUS gasta R$ 488
milhões por ano com a obesidade e doenças relacionadas, como diabetes,
cardiopatias e câncer de mama.
—
O resgate da qualidade alimentar é muito importante, mas estamos em um contexto
que dificulta isso — diz Roberta Cassani, da Sociedade Brasileira de
Alimentação e Nutrição.
A
oferta de alimentos frescos pode ser um desses obstáculos para quem quer se
alimentar de forma saudável. Além de onipresentes, os ultraprocessados investem
pesado em propaganda. Mais de dois terços dos comerciais sobre alimentos na TV
anunciam fast food, guloseimas, refrigerantes. A maioria, dirigida a crianças e
adolescentes. Para o Ministério da Saúde, o poder público pode atuar com
regulamentação da publicidade e taxação. O México, por exemplo, aumentou a
tributação sobre refrigerantes e tem tido resultados positivos.
—
É preciso dar condições para as pessoas abandonarem os ultraprocessados. Elas
precisam saber que eles não fazem bem à saúde, precisam poder comprar alimentos
frescos e saber cozinhar. O ambiente tem que colaborar — afirma Elisabetta.
Projetos
pedem rótulos mais informativos e claros
Na
embalagem, o destaque é para a laranja. Mas dentro da caixinha do néctar não é
ela que impera. Pela lei, 40% apenas são suco. Os 60% restantes são água e
açúcar. O rótulo até diz isso, mas nem todo mundo percebe. As letras miúdas não
ajudam a dar destaque à lista de ingredientes, que traz a composição do
alimento em ordem decrescente.
—
A lista é a informação mais útil para o consumidor fazer escolhas saudáveis. Se
você quer um cereal matinal e o primeiro ingrediente é açúcar, então ele não é
uma boa opção — explica Francine Lima, criadora do canal Do Campo à Mesa, no
YouTube.
No
Senado, projetos querem tornar essas informações mais claras e acessíveis ao
consumidor. Um deles (PLS 126/2014), do ex-senador Jayme Campos, sugere o uso
de recursos gráficos, como ícones, para que o consumidor saiba de imediato do
que é feito o produto. Ideia semelhante já é adotada pelo Reino Unido, que usa
as cores do sinal de trânsito para simbolizar a quantidade de gordura, açúcar e
sódio. Se for alta, é vermelho; média, amarelo; e baixa, verde.
No
Brasil, a medida está em debate pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária
(Anvisa). Francine, que participa da discussão na agência, propõe que a
composição dos produtos seja dividida em três listas: alimento, ingrediente
culinário (açúcar, sal, gordura) e aditivo. Assim, ficaria mais fácil, afirma,
identificar os ultraprocessados.
—
No caso do refresco em pó, com essa separação, você veria que ele não tem
alimento quase nenhum e uma lista bem grande de aditivos, além de açúcar.
Outra
proposta no Senado quer justamente advertir sobre os males do açúcar. Pelo
projeto, de José Medeiros (PLS 8/2015), os rótulos das bebidas adoçadas
(refresco, néctar, refrigerante) devem trazer textos e imagens de alerta, como
nos maços de cigarro, sobre os problemas do consumo excessivo de açúcar .
—
A ideia é impactar, chamar a atenção para a obesidade e ajudar a conscientizar
as pessoas — diz o senador.
O
teor de açúcar nas bebidas prontas surpreende. Uma caixinha (200 ml) de néctar
de fruta pode ter 20 g; e uma lata de refrigerante (355 ml), 37 g. Sozinhas,
essas bebidas já fornecem quase o limite de açúcar diário. O máximo deve ser
50g/dia (cerca de 5 colheres de sopa), recomenda a Organização Mundial da Saúde
(OMS).
O
açúcar está escondido também em ketchup, mostarda, molho de tomate. A grande
parte do açúcar consumido no mundo vem justamente de produtos como esses, não
vistos como doces. Preocupada com isso, a OMS acaba de lançar diretrizes para
limitar as adições do ingrediente pela indústria. Com o mesmo objetivo, projeto
de Antonio Carlos Valadares (PSB-SE) quer fixar teor máximo para açúcar e
gorduras nos industrializados (PLS 106/2010).
Para
ajudar quem come fora de casa, o senador propõe, no PLS 489/2011, que
restaurantes e lanchonetes divulguem a composição nutricional dos alimentos.
Para Valadares, faltam informações para o consumidor:
—
Devemos focar na educação, mostrando ao consumidor que ele é que detém o poder
da escolha. E, com a informação nutricional, vamos ajudá-lo a priorizar a saúde
— afirma.
10 passos para uma alimentação saudável |
---|
1 Faça dos alimentos naturais a base da alimentação |
2 Use óleos, gorduras, sal e açúcar em pequenas quantidades |
3 Limite o consumo de produtos processados |
4 Evite os ultraprocessados |
5 Coma com regularidade e atenção e, se possível, com companhia |
6 Faça compras em locais que ofereçam alimentos frescos, como feiras |
7 Desenvolva, exercite e partilhe habilidades culinárias |
8 Planeje o tempo para dar à alimentação o espaço que ela merece |
9 Fora de casa, dê preferência a comidas feitas na hora |
10 Seja crítico quanto à publicidade de alimentos |
Agência Senado (Reprodução autorizada mediante citação da Agência Senado)
Guia
Alimentar para a população brasileira:
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